Porto Velho, Rondônia – A obtenção da Carteira Nacional de Habilitação (CNH) para carro e moto no Brasil, especialmente no que tange ao exame toxicológico, tem se tornado um campo minado para os futuros condutores, inclusive para aqueles que utilizam medicamentos controlados, como os para emagrecimento. A rigidez da legislação atual, que visa coibir o uso de substâncias ilícitas ao volante, acaba por esbarrar em uma realidade complexa, onde a saúde e o direito de dirigir se chocam.
A obrigatoriedade do exame toxicológico de larga janela de detecção para motoristas das categorias C, D e E já é uma realidade há anos. No entanto, a discussão sobre a extensão dessa exigência para as categorias A (moto) e B (carro) tem ganhado força e, mais do que isso, avançou significativamente no cenário legislativo brasileiro.
Atualmente, o Código de Trânsito Brasileiro (CTB) e suas resoluções complementares detalham a realização do exame toxicológico para motoristas profissionais. Contudo, a inclusão das categorias A e B nessa obrigatoriedade para a primeira habilitação é um ponto de discórdia que está prestes a se tornar lei.
O Projeto de Lei (PL 3965/2021) que prevê a obrigatoriedade do exame toxicológico para quem busca a primeira habilitação nas categorias A (moto) e B (carro) já foi aprovado pelo Congresso Nacional, tanto no Senado quanto na Câmara dos Deputados. A matéria, que ganhou destaque no final de maio e início de junho de 2025, aguarda agora a sanção do Presidente da República para se tornar lei.
A principal justificativa para a ampliação seria a segurança no trânsito, argumentando que o uso de qualquer substância que altere a percepção ou os reflexos, incluindo medicamentos para emagrecer que contenham substâncias psicoativas, pode colocar vidas em risco.
O problema é que muitos desses medicamentos, embora prescritos por médicos e essenciais para a saúde de muitos, podem apresentar em sua composição substâncias que se assemelham a anfetaminas ou outros componentes detectáveis nos exames toxicológicos, mesmo que não causem os mesmos efeitos de drogas ilícitas. A falta de uma diferenciação clara e de um processo de análise que leve em consideração o uso medicinal e a prescrição médica é uma das grandes lacunas que ainda persistem mesmo com a aprovação do PL.
A discussão sobre a ampliação do exame toxicológico para categorias A e B não é totalmente nova, mas o avanço legislativo do PL 3965/2021 e o aprofundamento na questão dos medicamentos lícitos, buscando um equilíbrio entre segurança e direito individual, é o que a torna um tema de caráter inédito e urgente na fase de implementação.
Com a iminente sanção presidencial do PL 3965/2021, que estabelece que o exame buscará detectar substâncias psicoativas que comprovadamente comprometam a capacidade de direção (com uma janela de detecção mínima de 90 dias), a discussão se volta para a clareza da regulamentação. Em caso de resultado positivo, o candidato não poderá concluir o processo de habilitação, podendo refazer o exame após um determinado período. O projeto também inclui outras medidas, como a destinação de parte das multas para a “CNH Social” e a permissão para transferência eletrônica de veículos.
Para que a obrigatoriedade seja justa e eficaz, alguns pontos cruciais ainda precisarão ser definidos na regulamentação da lei, após a sanção:
* Diferenciação Clara entre Substâncias Lícitas e Ilícitas: É fundamental que os exames toxicológicos e a regulamentação consigam distinguir, de forma inequívoca, entre substâncias de uso recreativo ilícito e aquelas que compõem medicamentos prescritos, como os para emagrecimento ou tratamento de TDAH, por exemplo. Isso exigirá:
* Limites de Detecção Específicos: Estabelecimento de limites de corte diferenciados para substâncias que podem ser encontradas tanto em drogas ilícitas quanto em medicamentos.
* Validação de Prescrições Médicas: Um sistema robusto para que o motorista possa comprovar o uso legítimo de medicamentos, sem que isso invalide sua CNH. Isso poderia envolver a apresentação de laudos médicos detalhados e receitas, um ponto crucial que a regulamentação da nova lei precisará endereçar.
* Análise Qualitativa: Além da detecção, uma análise qualitativa que determine a concentração da substância e se ela está dentro dos padrões terapêuticos, diferenciando o uso terapêutico do abuso.
* Capacitação e Credenciamento de Laboratórios: A ampliação da demanda por exames toxicológicos exigiria uma expansão significativa da rede de laboratórios credenciados, com a garantia de qualidade e padronização dos processos, um desafio prático que virá com a nova lei.
* Campanhas de Conscientização: Paralelamente à entrada em vigor da lei, serão necessárias campanhas de conscientização massivas para educar a população sobre os riscos do uso de substâncias ao volante e sobre a importância do exame toxicológico. Mais do que nunca, será fundamental tranquilizar e orientar aqueles que utilizam medicamentos controlados de forma legítima, explicando como o processo de comprovação será feito.
Com a aprovação do PL 3965/2021 no Congresso, o que falta para a obrigatoriedade para a população das categorias A e B é, primeiramente, a sanção presidencial e a publicação da lei no Diário Oficial da União.
Contudo, para que essa obrigatoriedade seja eficaz e justa, é crucial que a regulamentação da futura lei venha acompanhada de soluções claras e transparentes para a questão dos medicamentos. Sem essa diferenciação e sem um processo justo para a comprovação do uso terapêutico, a lei, embora bem-intencionada, pode se tornar um fardo desnecessário e injusto para milhões de brasileiros que dependem de medicamentos controlados para sua saúde.
A questão não é simplesmente proibir, mas sim garantir a segurança no trânsito sem penalizar indevidamente o cidadão. A população precisa entender que a medida visa a segurança de todos, mas o Estado tem o dever de garantir que essa segurança não se sobreponha de forma irrazoável ao direito individual à saúde e à mobilidade.
Em Porto Velho, como em todo o Brasil, a expectativa é que esse debate evolua para uma solução equilibrada na fase de regulamentação, que promova um trânsito mais seguro sem criar barreiras intransponíveis para os cidadãos que buscam sua CNH de forma legítima.
O caminho é o diálogo, a pesquisa e a construção de uma legislação que contemple a complexidade da vida real, agora com o desafio adicional de regulamentar uma lei já aprovada pelo parlamento.
Por Hiran Castiel, advogado e jornalista