O debate sobre a constitucionalidade do dispositivo do Estatuto da Advocacia que prevê sanções, incluindo a exclusão profissional, para casos de “embriaguez ou toxicomania habituais” ganhou nova dimensão diante das recentes mudanças legislativas e jurisprudenciais.
A questão transcende o âmbito meramente disciplinar, tocando em aspectos fundamentais de direitos humanos, saúde pública e dignidade profissional.
A evolução do ordenamento jurídico brasileiro nas últimas duas décadas demonstra uma clara mudança de paradigma no tratamento das questões relacionadas à dependência química.
Partimos de uma abordagem punitivista, que tratava a questão como falha moral ou disciplinar, para uma compreensão mais humanizada e cientificamente embasada, que reconhece a dependência química como questão de saúde pública.
Marco Legal em Evolução
O primeiro passo significativo nessa evolução foi dado com a Lei 10.216/2001, conhecida como Lei da Reforma Psiquiátrica.
Esta legislação revolucionou o tratamento jurídico das questões de saúde mental no Brasil, estabelecendo direitos fundamentais e vedando discriminações. Cinco anos depois, a Lei 11.343/2006 consolidou a distinção entre usuários e traficantes, priorizando medidas de prevenção e reinserção social para os primeiros.
A grande revolução, contudo, veio com o Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei 13.146/2015), que alterou radicalmente o conceito de incapacidade civil no direito brasileiro.
A “toxicomania”, antes considerada causa de incapacidade absoluta, passou a ser compreendida sob a ótica da inclusão e da não-discriminação.
Esta mudança tem profundas implicações para todas as áreas do direito, incluindo o direito administrativo-disciplinar.
Coroando essa evolução, o Supremo Tribunal Federal, em 2024, no julgamento do RE 635659, consolidou a descriminalização do porte de drogas para uso pessoal, reforçando a abordagem da questão como matéria de saúde pública, não de direito penal.
Inconstitucionalidade manifesta
Diante desse novo marco legal, o dispositivo do Estatuto da Advocacia que prevê a exclusão profissional por “toxicomania habitual” revela-se manifestamente inconstitucional.
A incompatibilidade se manifesta em múltiplos níveis.
Primeiro, há violação direta a princípios constitucionais fundamentais, como a dignidade da pessoa humana (Art. 1º, III, CF), o direito à saúde (Art. 196, CF) e a não-discriminação. A Constituição Federal estabelece um paradigma de proteção e inclusão que é frontalmente contrariado pela norma estatutária.
Segundo, o dispositivo colide com todo o arcabouço legal posterior, especialmente com o Estatuto da PcD, que veda expressamente a discriminação baseada em condições de saúde e garante o direito ao trabalho em igualdade de condições.
Terceiro, a norma representa uma abordagem retrógrada, que trata como infração disciplinar-profissional uma condição reconhecida pela ciência e pelo direito como questão de saúde pública.
Impactos práticos e discriminação
Na prática, a manutenção desse dispositivo no Estatuto da Advocacia produz efeitos nefastos.
Advogados/as que necessitam de tratamento para dependência química frequentemente o evitam, temendo as consequências profissionais. Isso agrava o problema de saúde e, paradoxalmente, pode comprometer mais severamente o exercício profissional e a autonomia destes.
Além disso, a norma cria uma discriminação injustificada. A preservação desse dispositivo no Estatuto da Advocacia mantém uma abordagem punitivista anacrônica e assíncrona com o novo momento constitucional.
Necessidade de atualização legal
A solução passa necessariamente por uma atualização normativa.
É imperativo que o Estatuto da Advocacia se alinhe ao novo marco legal, substituindo a abordagem punitivista por uma perspectiva de saúde mental, acolhimento humanizado e suporte profissional.
Essa atualização deve contemplar:
- Reconhecimento da dependência química como questão de saúde
- Garantia de tratamento sem prejuízo do registro profissional
- Implementação de programas de suporte institucional
- Protocolos claros de afastamento temporário e retorno ao trabalho
- Medidas de prevenção e acompanhamento
Enquanto essa atualização não ocorre, é necessário que os tribunais de ética da OAB adotem uma interpretação conforme a Constituição, privilegiando o tratamento e a reabilitação sobre a punição.
A manutenção de dispositivos discriminatórios no Estatuto da Advocacia viola direitos fundamentais. A advocacia, que historicamente esteve na vanguarda da defesa dos direitos humanos, não pode manter em seu estatuto normas que perpetuam preconceitos e violam direitos fundamentais.
É hora de a comunidade jurídica se mobilizar para atualizar o Estatuto da Advocacia, adequando-o ao novo paradigma legal e constitucional. Isso não significa abandonar o compromisso com a qualidade dos serviços jurídicos; é sim reconhecer que questões de saúde mental exigem tratamento adequado e não punição, discriminação e expulsão.
A exclusão profissional por dependência química não apenas é inconstitucional; é também ineficaz e prejudicial. Uma abordagem moderna, baseada em evidências científicas e alinhada aos princípios constitucionais, protegerá os interesses da sociedade como também fortalecerá a dignidade da profissão.
O momento é oportuno para a mudança. Com as recentes decisões do STF (em 2024) e a consolidação do novo marco legal da inclusão, manter dispositivos discriminatórios no Estatuto da Advocacia tornou-se insustentável.
É uma necessidade adequar as normas profissionais aos valores constitucionais e de direitos fundamentais que protejam uma concepção inclusiva e acolhedora dos sofrimentos psíquicos.
Autor – Vinicius Valentin Raduan Miguel
Advogado e pesquisador associado do Desinstitute, organização que atua com temas de saúde mental e direitos humanos